Esparsos e parcos apontamentos

quinta-feira, outubro 28, 2004

La Poderosa

Em 1952 dois jovens argentinos saem de Buenos Aires no pico do Verão com o objectivo de atingir por terra o extremo norte da América do Sul, a Venezuela, trepando pela espinha vertebral do continente.

Percorreriam milhares de quilómetros de mota, La Poderosa, e a pé, cruzando os Andes na Patagónia, escalando o continente até passarem novamente para o lado oriental da cordilheira, no Perú, para uma estadia programada em San Pablo, uma colónia de leprosos nas margens do Amazonas.

Alberto e Ernesto planearam quatro meses de viagem e levaram oito. Principalmente para Ernesto, assim nos contam, foi a alvorada da sua consciência social e política, o contacto com realidades diferentes, desde os imigrantes alemães, foragidos de uma guerra longínqua que os ventos patagónicos apenas disfarçam, até aos indígenas peruanos, Incas de orgulho e título.

Gael García Bernal, o Che de Salles, a ler o Manisfesto do Partido Comunista
Ernesto fez 24 anos em San Pablo. Contam-nos que discursou tomado pelas ideias que nele despertavam, sentenciando que a América do Sul teria fronteiras falsas, que todos esse povos não seriam mais que um único, desde a Colômbia até Magalhães, a remota região austral chilena.

Ernesto aqui tornou-se Guevara. O "Che" viria mais tarde.

Na viagem, ou melhor, no filme da viagem, ressaltam as convicções, a irreverência, a energia e a determinação do que é ainda um ícone do século XX e um modelo. A cena da travessia nocturna no dia do seu aniversário, depois do discurso e da leitura do Manifesto do Partido Comunista, simboliza a grandeza da sua determinação em mudar o mundo, aqui na vontade de estar com os pacientes, ostracizados na outra margem do rio mais caudaloso do mundo.

Todos torcem por ele. Ele chega. Conseguiu.

Alberto e Ernesto embarcam numa jangada, saboreando a corrente do Amazonas até à Colômbia e daí para Venezuela. Alberto fica e despedem-se no aeroporto. Oito anos depois, Alberto muda-se para Cuba a convite do seu amigo, agora coronel da Revolução Cubana.

O filme não responde à minha pergunta: como se tornou aquele jovem médico asmático num guerrilheiro?! El Che

Uma sucessão de acontecimentos pela América Latina, entre prisões e discursos, terão levado a que fosse para a Guatemala, onde conheceu Raul Castro.

No México conheceu Fidel Castro e os revolucionários cubanos no exílio. Embarcou no "Granma" em Dezembro de 1956 para tomar a ilha, mas os revolucionários só conseguiriam entrar em Havana depois de 3 anos de guerrilha comandada a partir da Sierra Maestra.

Com a Revolução, é nomeado Coronel e vai assume vários cargos no Governo Revolucionário e no partido.

Em 1965, após enúmeras visitas a países subdesenvolvidos e contactos com os oprimidos do mundom, despertaram nele o sentido rebelde, a missão de combater o imperialismo das nações abastadas.

Partiu. Com uma despedida. Ao povo de Cuba. A Fidel.

Dois anos mais tarde foi assassinado na Bolívia, contam-nos que numa emboscada promovida pela CIA.


Confesso que nunca fui admirador de personagens fugazes, e o "Che" parece-me uma delas. Determinado, por certo, com o afã de percorrer mundo a combater desinteressadamente causas que não seriam a dele, era argentino, não cubano muito menos congolês.

Se não compreendo como se torna um rapaz, medico, asmático, de boas famílias num guerrilheiro nunca hei-de compreender como se tornam homens que defendem a liberdade em ditadores tão sanguinários e repressivos, como se a esquerda e a direita não estivessem num plano mas numa esfera: quanto mais para a esquerda se caminha, passando pela extrema, dá-se a volta e cai-se no abismo totalitário, no caldeirão de ideias de esquerda com ascedência fascista, no turbilhão do pensamento nazi reciclado por revolucionários vermelhitos sem escrúpulos.

Empossado do comando da Fortaleza La Cabaña, em Havana, o Che foi também responsável por mortes, fuzilamentos deorrentes de julgamento sumários, sem advogado ou recursos, injustiças jutificáveis pela Revolução.

Nunca hei-de comprendeer o que leva um homem que fala de liberade a perpetuar-se no poder uma vida inteira, com a atitude paternalista das ditaduras fascistas, por achar que foi escolhido, enviado, empossado para infernizar a vida dos que não têm escolha.

Che Lives... para quê?

O filme tem bonitas paisagens, mas só quem já entra convencido da alegada grandiosidade e integridade de Guevara é que sairá convencido disso mesmo.

Para os outros, não é mais que um filme. Baseado numa história verdadeira. Poderosa.

quarta-feira, outubro 27, 2004

Cupido

Hoje apanhei outra vez, inadvertidamente, o episódio piloto do Cupido, por entre o zapping.

Não sou dado a cultos, muitos menos de mais uma série obscura que passa a imagem de Chicago como uma cidade romântica, onde um tipo está convencido de que é o Cupido, o próprio, helénico deus. Apresentado o rapaz, temos a rapariga, uma jovem psicóloga, linda, com óculos de massa e muita boa vontade para com o seu doente.
Cupido & Psique
Qual Moonlighting, eles nunca se dão apercebem que ela é Psique, a mortal pela qual o Cupido se apaixona, e ficamos toda a série à espera de os ver juntos e sorridentes e o tal final feliz.

Mas o clima está lá, fala-se de amor, sempre ele une alguém com a preciosa ajuda dos próprios, e as contas no seu estendal do loft vão-se movendo pelas mãos de Zeus.

Tal como o elefante não deixaria de escaqueirar uma inteira loja de cristais, do alto dos seus cuidados em deslocar-se de mansinho, não consigo evitar a lamechice a falar do Cupido e dizer que por vezes penso que ele anda aí à solta (talvez à excepção dos autocarros da Carris, que nem um deus aguenta aquele tormento!), operando pacientemente o seu arco e flecha para atingir inexoravelmente os mais distraídos, seja nos olhares ou nos sorrisos de quem conhecemos.

O primeiro episódio termina com Dylan cantado por Bono, Love rescue me, Come forth and speak to me, e com a promessa de mais aventuras que nos deixarão sorridentes com a candura deste deus urbano, Raise me up, And don't let me fall, com a felicidade semeada nas pessoas que ele vai tocando, No man is my enemy, My own hands imprision me, e florescente em todos nós, Love rescue me.

sexta-feira, outubro 01, 2004

O acidente

Já é sabido que quem comete um delito se cofessa ao fugir ou pela simples manifestação da intenção de o fazer. Mais raro é tentar enquadrar essa falta na normalidade que todos temos por aceite.

A Igreja Holandesa, em mais uma das grandes e enaltecedoras lições de moral que o Catolicismo nos tem ensinado nos últimos séculos, qualificou o abuso sexual de um dos seus padres a uma menina menor, como um acidente de trabalho, uma vez que os abusos ocorreram durante o horário de trabalho do senhor padre e no seu local de trabalho.

Cristo, Faytene Kryskow, Urban Missionary, Vancouver, Canada

Depois de condenada judicialmente a pagar uma indemnização por danos imateriais, a Igreja envolveu-se numa disputa com a sua seguradora que, com a lógica vigente, não aceita pagar a quantia disposta pela tribunal argumentando que, de facto, não se trata de um acidente de trabalho.

Aos mais distraídos recordo que um acidente costuma ser algo de imprevisível, incontrolável, assim como ser mordido por um leão à solta, abalroado por uma locomotiva desgovernada ou sepultado por um piano numa rua da Baixa.

Já sabemos há muito que a escola dos Domingos de manhã serve para muito mais que ensinar a Bíblia, mas querer reduzir o crime de pedofilia ou violação de menores a um acidente ultrapassa a decência e provoca tal indignação que até me falta o ar para gritar bem alto, aturdido que estou pela desfaçatez de levantar tal argumento. Quanta hipocrisia.