Objectos I
Tal como a estante com os mais pesados livros nos parece mais suja nas vésperas de um exame importante, e logo carente de uma limpeza meticulosa, resolvi passar uns dias a arrumar as minhas coisas, desde o quarto à cozinha não deixando de fora as outras divisões que compõem o meu moquifo, sala e quarto de banho. Diria quem está de fora que parece que eu não tenho o que fazer e às vezes mereceria a minha confirmação, parece que não tenho que fazer, é verdade, mas o certo é que tenho, só não sei por onde começar, tal é a bagunça cá dentro e lá fora.
Perante a inutilidade dos objectos que fui encontrando na minha senda, à qual acrescento o facto de que os ditos ali estão proscritos no fundo de um caixote sem qualquer utilidade aparente presente ou futura, vejo-me perplexo com a simpatia que nutro por tais artefactos. Parece que não os consigo deitar fora, afigura-se-me a partir de agora impensável separar-me deste companheiros de luta que desde há tanto me seguem e que ali ficaram prostrados à espera deste dia, aguardando ser reencontrados.
Não são só os sapatos que andam connosco e documentar a nossa vida. Milhentos outros objectos se ocupam da mesma função e já diz o cliché que se eles falassem… (este cliché é mesmo assim, acaba com reticências e não pense o leitor que se trata de um cliché interrompido, está bem completo apesar dos infames três pontinhos no fim).
A escova de dentes que vêem aqui aguentou mais ainda que um ordinário par de sapatos. Comprada em Madrid para limpar a minha dentição os eventuais restos de uma qualquer tortilha de batatas que não serviu para encher até metade o meu faminto estômago, assim está conservada no seu invólucro original desde então. A viagem que me levou lá teve um pouco de improviso imerso na insanidade que o mundo vivia nos dias imediatamente a seguir aos acontecimentos de Setembro de 2001, “Primeira vez em Madrid e nada mais ostento que a roupa do corpo e alguns trocos no bolsos”, lembro-me de ter pesado entre multidões que saboreavam o retorno das férias. O orçamento era de tal modo reduzido e a agenda preenchida que não consigo recordar que obscuro raciocínio ditou que as minhas prioridades recaíssem em escovas de dentes e roupa interior limpa (esperávamos!) logo à chegada.
As duas noites, passadas entre pensões nos bairros povoados de prostitutas e bares que já tinham passado os tempos em que a clientela era simpatizante gay estando portanto preenchidos até à porta de apoiantes de praticantes de corpo e alma das referidas actividades, não deixam grandes recordações (pelo menos que acrescentem algo à situação que vivia) para além do colorido da escova de dentes. Sempre presente, escrita em três línguas teve o inesperado mérito de ser o único souvenir que trouxe do périplo.
Havia de ir a Madrid quatro vezes mais até finalmente me debruçar na cronologia dos acontecimentos que me levavam à conclusão de que a escova teria já, nessa altura, pelo menos três anos. Esquecida na bolsa pessoal de viagem, e logo sem uso contínuo, a escova continuava plenamente funcional e a pedia para ser útil na remoção de todas as pequenas partículas de batatas bravas que acabara de jantar. Comentei isto em voz alta e a resposta, em forma de comentário autoritário operático não tardou, “Mas como podes tu estar contente por usar um escova de dentes com três anos?”, ao que respondi pacientemente, “Vou ali e já venho, preciso de comprar uma escova de dentes."
1 Comments:
Sensacional!!!
18/8/06 15:12
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