Esparsos e parcos apontamentos

quinta-feira, setembro 22, 2005

O Beco

Depois de ver a Cidade de Deus só me ocorre dizer:

Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
— O que eu vejo é o beco

Manuel Bandeira



Lamentavelmente, a realidade é mais violenta que esta gravura estilizada de Santa Tereza em início de século! XX, é claro.

terça-feira, setembro 20, 2005

Rated?

Não sei porque obscura carga de água, ontem à noite estava a passar num canal de televisão, que aliás agora não recordo, o Lost In Translation, filme de imerecido e desmesurado culto que não me arranca mais que um sorriso.

Não um sorriso complacente, um sorriso sentido, solidário com uma paixão que só não é de Verão porque a acção é em Tóquio e não na Quarteira. Acho bonito não saber o que ela lhe diz no fim (secretamente queria que fosse, "manda a tua mulher prás estevas que eu vou lá pra casa seja qual for a cor da alcatifa!", embora ache que ela lhe tenha dito só "the budget for our so-cool indy movie is over, let's fly back to NYC!"). Seja como for, ficamos na dúvida e meditabundos só por respirar perto de alguma lembrança do filme.

Enfim, no meio daquela desgraça que é Tóquio (Loger Moore? Loger Moore?), verdadeiro turbilhão cultural que até faz um gajo andar na rua de camisola virada do avesso, reparo que no canto superior direito estava um círculo vermelhinho em cheio…

“?!”

Qual será a cena (sim, aqui posso dizer cena que estou mesmo a falar de cinema!), repito, qual será a cena que leva as paralelipipédicas bestas do canal em questão (que não me recordo mesmo qual seria) a classificar o filme como chocante? Hum?

Serão os néons da cidade?
Será o Bob a beber whisky?
Ou a actriz oca que descobriu um laxante com uma tremenda eficácia que até o aconselha num bar de hotel?
Será a juventude cândida do rosto de Charlotte?

Pouco depois, vejo Bob a cantar em karaoke uma música que demoro a reconhecer, assisto no ecrã à sua luta com a melodia, gritando e esperneando o refrão “Qual é a piada da paz, amor e compreensão?”

Distraio-me em elucubrações enquanto apago a televisão (não me apetece ver o final outra vez), dizendo a mim mesmo que deve ser essa a parte chocante do filme, Bob a dizer do alto de um prédio japonês que está farto, Bob a dar a conhecer ao mundo o seu manifesto, chega de paz, vamos à guerra, basta de amor, passemos à paixão, abaixo a compreensão, escolhe lá a cor da alcatifa que eu… já te digo qualquer coisa!

sábado, setembro 17, 2005

Passar o tempo

Hoje completo 10.100 dias. De vida. De existir.

Ouço despreocupadamente a música que toca enquanto olho atentamente o ecran estático do computador.

"Quem me dera, ao menos uma vez,
Como a mais bela tribo, dos mais belos índios,
Não ser atacado por ser inocente."

O quarto tem uma luz estranha, vem da lua, está cheia.

"Eu quis o perigo e até sangrei sozinho.
Entenda - assim pude trazer você de volta pra mim
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim."

A sugestão de aniversario junto com mais uma lua, por pouco me remetiam para um estado assim nostálgico...

"E é só você que tem a cura pro meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi. "


Mas enfim, vou ver televisão, pelo menos durante 60 minutos, imagens de miséria humana que nos chegam do país modelo.

"Nos deram espelhos e vimos um mundo doente -
Tentei chorar e não consegui."


Vou ver se o tempo passa. Pelo menos mais um dia.

domingo, setembro 11, 2005

Dia de Trabalho

Acordei de manhã hoje, domingo, e nem sequer sabor a papel de partitura tinha na boca. "Curioso", pensei. Procurei na parte interior da minha roupa de ontem e nem sinal de manchas coloridas ou de insectos esmagados. Voltei ao leito, vasculhei e tudo parecia normal, não havia ninguém desconhecido na cama, os lençóis exibiam uma cor uniforme, sem manchas, odor regular.

Vi-me ao espelho. À parte da expressão bovina de quem está prestes ver um par de cornos a rebentar pela testa alinhados com umas orelhinhas irrequietas para enxotar as moscas, tudo parecia embebido numa normalidade que creio estranha num domingo.

Fui ao carro. Não havia lixo lá dentro, os bancos da frente efectivamente em posição de condução, o banco de trás seco. Da parte de fora, nem um farolim partido.

Testei o rádio mesmo a tempo de ouvir que o céu estaria "pouco nublado em todo continente com possiblidade de chuvas no interior, temperatura máxima 23ºC".

"Que me interessa o calendário, hoje só pode ser dia de trabalho", disse alto.

quinta-feira, setembro 08, 2005

Estranho...

Ontem não conseguia dormir, pus um filme e abri a persiana para ver a noite. Não vi o filme. Acordei com o genérico final e gelado, com a certeza de quão deprimente é o fim de Verão.

A rentrée tem aquele gosto amargo da passagem de ano em que por razões insondáveis sentimos uma vã necessidade de definir um rumo, traçar objectivos, fazer promessas. Aqui vão as minhas:

- olhar bem para onde piso!

- nunca em qualquer situação pensar em mergulhar em tigelas de caldo verde, muito menos se tiver que dividir o espaço com a temível tartaruga perneta Amália;

- não falar com ninguém chamado Tobias;

- começar a trabalhar mais reduzindo a qualidade e o interesse do que se faz, as pessoas adoram um gajo sempre ocupado com papéis;

- refrear o impulso nómada que me ataca de cada vez que passo perto de uma estrada dando voltas ao quarteirão;

- ensaiar para o Natal uma história ficcional acerca de um historiador vesgo que enverga vestuário ganho inusitadamente em pacotes de batatas fritas e não deixa ninguém adormecer gritando entusiasticamente grandes números (doooooooooois milhoooooooooooooões, viiiiiiiinte miiiiiiiiiiiiiiiiil,...).

Isto já me vai dar que fazer até ao fim do ano.

quinta-feira, setembro 01, 2005

Quero ir pra casa!